Paulo Freire e cosmovisões ancestrais

Article de Reinaldo Matias Fleuri

10 / 05 / 2021 | STEPV

Nos encontros pessoais com Paulo Freire, por várias vezes o ouvi dizer: “Não me copiem! Me reinventem”. Assim, gostaria de levantar algumas hipóteses para “reinventar” ou se “reencontrar com” Paulo Freire desde as cosmologias, filosofias e pedagogias cultivadas milenarmente pelos povos originários do “sul global”.

Muitos povos originários do continente de “Abya Yala”, bem como dos continentes africano e austral, foram dizimados ou subalternizados pelos violentos processos de colonização e escravização impostos ao longo da história da humanidade. Entretanto, suas cosmovisões resistem e re-existem de múltiplas formas. Mediante escuta intensa e sensível, podemos aprender com estes povos a restabelecer nossos modos de vida e de produção segundo os princípios ancestrais, que aqui indicamos com o conceito de “Bem Viver”.

A literatura sobre o Bem Viver (cf WALDMÜLLER, 2014; BENTO, 2018, p. 99-111) apresenta de forma mais ou menos ampla seus princípios. Acosta (2016, p. 33) indica resumidamente os princípios de “[...] reciprocidade, relacionalidade, complementariedade e solidariedade entre indivíduos e comunidades [...]” como bases do Bem Viver “[...] para formular visões alternativas de vida.” Walsh (2009, p. 217) também descreveu a relacionalidade, a correspondência, a complementariedade e a reciprocidade como princípios do Bem Viver. E Macas (2014), por sua vez, traz os mesmos quatro princípios, porém denomina “integralidade” o que Walsh (2009) apresenta como “correspondência”.

O princípio da relacionalidade refere-se à interdependência entre todos os elementos da realidade social, natural e sobrenatural, interconectados de forma a se complementar e autorregular. (WALSH, 2009). “[…] La idea de la relacionalidad se extiende a cualquier actividad – lo que un individuo hace, tiene repercusiones en su entorno, sea este humano, natural o sobrenatural.” (ALTMANN, 2016, p. 59). Desse princípio, derivam os demais. “La relacionalidad constituye todo un tejido; los elementos de una realidad se entrelazan mutuamente entre sí, en función de posibilitar la totalidad, la integralidad, la vida. (MACAS, 2014, p. 188).

O segundo princípio se refere à correspondência ou à integralidade: a relação harmoniosa entre os componentes da realidade corresponde a uma matriz inerente ao conjunto de todos os seres existentes.  “[...] Los elementos de la existencia no es posible que se desarrollen por separado, sino, desde una matriz integral, dentro del conjunto de esa totalidad.” (MACAS, 2014, p. 187). A relação de correspondência existe desde e entre os vários níveis de relação possíveis. Assim, na visão indígena andina: “El orden cósmico de los cuerpos celestes, las estaciones, la circulación del agua, los fenómenos climáticos y hasta lo divino tiene su correspondencia (es decir, encuentra respuesta correlativa) en el ser humano y sus relaciones económicas, sociales y culturales. (MALDONADO, 2014, p. 204).

A complementaridade, terceiro princípio do Bem-Viver, indica a lógica de realização dos dois primeiros. De acordo com este princípio, as dualidades (em que a lógica ocidental enfatiza a relação de oposição e de mutua exclusão), na filosofia indígena andina, são entendidas como relações entre elementos que, ao se diferenciarem, são mutuamente complementares e essenciais para que a vida se realize. Assim, cada elemento ou dimensão do sistema-cosmos, bem como os outros dos quais se diferenciam e se excluem, são forças necessárias que convivem, se relacionam e devem se manter equilibradas. Entende-se que tudo o que existe possui energias negativas e positivas, que desagregam e que agregam, sejam animais, plantas ou seres humanos.  A continuidade da vida depende que elas se complementem. Ou seja, “cada ente y cada acontecimiento tienen como contraparte un complemento, como condición necesaria para ser completo y ser capaz de existir y actuar. Los diversos se complementan.” (MALDONADO, 2014, p. 204). “Por cuanto nada es incompleto, todo es integralidad, relacionalidad y complementariedad; desde su complejidad y desde la dinámica de los principios, se genera la armonía y el equilibrio. (MACAS, 2014, p. 187).

Assim, o mal, a doença, a morte são entendidas como desequilíbrios na interação entre os diferentes seres e entre seus respectivos contextos. São “passagens” fluidas de um padrão relacional para outro, na busca de reequilíbrio e vitalidade. Não são propriedades fixas inerentes aos elementos isolados. A potencialização da complementariedade entre os seres é o que permite estabelecer o fluido equilíbrio vital, em harmonia e correspondência com o cosmos.

Por fim, o quarto princípio, o da reciprocidade, estabelece que a cada ação corresponde uma reação, tanto na relação entre os seres humanos, como na relação destes com o universo. (WALSH, 2009). Trata-se de uma prática social e econômica de organização da vida comunitária pautada em relações solidárias e de assistência mútua. (MACAS, 2014). A prática da reciprocidade é fundamental e sustenta a organização comunitária de povos indígenas andinos exigindo que, “a cada acto humano o divino se debe corresponder, como finalidad integral, con un acto recíproco y complementario equivalente entre sujetos. Dar para recibir es una obligación social y ética.” (MALDONADO, 2014, p. 204).

Com base neste princípio, as comunidades indígenas andinas controlam o excedente, evitando o acúmulo e praticando a redistribuição. “La reciprocidad es una práctica de prestigiamiento social, de abundancia económica, de legitimidad política y de fortaleza espiritual. A través de ella se redistribuyen los excedentes y se logra un equilibrio social y económico. (MALDONADO, 2014, p. 200).

Em suma, as cosmovisões de povos originários ancestrais nos ensinam a Bem Viver, ou seja, a viver e conviver em plenitude, de forma a promover relações e contextos de harmonia, potencializando relações integrais, correspondentes ao princípios cosmológicos, mediante a ativação da complementariedade e reciprocidade entre todos os seres vivos – sejam humanos, naturais e espirituais. 

Paulo Freire e o Bem Viver
Os princípios epistemo-pedagógicos formulados por Paulo Freire transparecem uma íntima relação com os princípios inerentes às culturas dos povos originários, como os do bem-viver. Paulo Freire elaborou sua concepção pedagógica utilizando referências culturais de teorias críticas ocidentais. Mas seu engajamento com os movimentos sociais populares foi um processo pelo qual muito provavelmente lhe possibilitou aprender com perspectivas epistemológicas das culturas dos povos ancestrais revividos por comunidades populares da América Latina.

Assim, pode-se reconhecer os princípios do Bem Viver em sua metodologia didática dialógica, que se caracteriza pela cooperação e reciprocidade nas relações entre o educadores e educandos, favorecendo uma atmosfera de aceitação mútua, respeito, compreensão e comunicação entre diferentes sujeitos, na busca de compreensão e transformação dos contextos socioculturais e ambientais em que se constituem. Paulo Freire, neste sentido, muito se aproxima da perspectica decolonial ao indicar que as pessoas “se educam em comunhão, mediatizadas pelo mundo” (FREIRE, 1975, p. 79).

Por outro lado, desde o ponto de vista não-colonial das culturas ancestrais, somos convidados a reconfigurar a própria pedagogia crítica, ultrapassando a concepção antropocêntrica e racionalista de teóricos existencialistas e materialistas a que Paulo Freire faz referencia ao longo de sua obra.
O “mundo”, que sustenta as próprias relações entre os seres que o constituem, não se reduz à dimensão humana, mas incorpora as dimensões cosmológica e espiritual. O cosmos é constituído pela relação harmoniosa entre todos os seres do universo, que a própria ciência moderna hoje vai descrevendo desde o infinitamente pequeno (como a teoria quântica) até o infinitamente grande, como as relações entre as galáxias, que mesmo a bilhões de anos-luz de distancia estão sistemicamente conectadas ao nosso planeta Terra.

A espiritualidade vem também sendo ressignificada, para além da visão dualista predominante nas culturas ocidentais, que opõe a matéria ao espírito (o “espírito” é entendido como “imaterial”, por consistir em dimensões da realidade não perceptíveis sensorialmente, através da visão, audição, tato, sabor ou odor). “Espirito”, ou “mente” (mind), ao invés, pode ser entendido como “estrutura que coliga”, “padrão que conecta” diferentes seres e processos vitais (BATESON,  1986). A vida de cada ser é gerada e sustentada pelas complexas conexões com todos os seres presentes no cosmos que, por sua vez, contém as conexões com todos os seres pelos quais foram gerados e com todos os seres que serão gerados pela relações entre os seres vivos no presente.
Nesta perspectiva, o fundamento cosmológico e espiritual da opção política pela pedagogia do “oprimido” seria não apenas as lutas por desconstruir as instituições sociais, políticas e econômicas coloniais que produzem homicídios, genocídios e epistemicídios, mas sobretudo por empoderar a re-existência das conexões relacionais de complementariedade, reciprocidade e integralidade entre todos os seres que vivem e geram vida em plenitude.

Do ponto de vista educacional, a proposta freiriana de educação, entendida como processo dialógico de problematização e transformação das relações socioculturais desiguais e injustas, veio sendo construída como um instrumento de luta política dos grupos sociais e étnicos subalternizados ou excluídos pelos processos de colonização. Mas podemos aprender com as lutas sociopolíticas conduzidas pelos povos ancestrais a radicalizar os projetos de transformação social para além dos limites do Estado-Nação e do antropocentrismo, criando perspectivas de organização política que sustentem as diferenças culturais e socioambientais, bem como os direitos pluriversais da natureza, comprometendo-nos com os direitos de todas as gerações futuras a partir de nossa gratidão pelas vidas que as gerações precedentes nos geraram. Em muitas culturas ancestrais, a vida e a educação dos adultos estaria voltada a sustenta-los no cuidado das crianças, para que possam expressar e dar vida às ancestralidades de que são portadoras ao nascer. E este aprendizado ao longo da vida se faz na relação de escuta intensa e sensível aos anciões e anciãs, que se constituíram ao longo de suas vidas como ancestrais, que fazem pontes de conexões com as gerações a que estamos dando vida.
 
Na proposta pedagógica de Paulo Freire, os círculos de cultura são uma estratégia educacional para favorecer o diálogo na comunidade sobre as contradições que enfrentam em seu contexto social, de modo a promover a organização política para superá-las. Nesta direção, com as culturas indígenas, aprendemos que as lutas sociais e políticas não se restringem a mudanças no âmbito do sistema mundo moderno-colonial, mas se busca reconstruir as relações educacionais e, particularmente, introduzir processos de formação “[...] para a pesquisa inter e transcultural, uma disciplina corporal, mental e espiritual centrada na observação, energização e intuição”. (GAUTHIER, 2011, p. 55).

Por conseguinte, o diálogo problematizador a partir dos temas geradores pode ultrapassar o enfoque econômico-político dos processos de opressão e dominação, questionando seus fundamentos epistêmicos moderno-coloniais. O diálogo crítico entre as culturas ancestrais pode permitir processos transculturais e transmodernos de empoderamento epistêmico-ético dos diferentes povos e gerações, no sentido de “[...] desarollar las potencialidades, las possibilidades de essas culturas y filosofias ignoradas; acciones llevadas a cabo desde sus propios recursos [...]”.  (DUSSEL, 2017, p. 29).
Enfim, as reflexões apresentadas neste ensaio são apenas indícios da formulação ético-epistêmica de princípios cosmológicos e educacionais que intelectuais orgânicos de povos originários andinos vêm construindo em torno da concepção do Bem Viver. E mesmo as indicações comparativas com o denso pensamento de Paulo Freire são ainda hipotéticas. Espero que a “situação-limite” do caráter ensaístico deste texto seja um convite a promover o “inédito-viável” de escuta intensa e de diálogo intercultural crítico com os povos originários ancestrais, cuja vida e convivência atravessam também o território e o povo brasileiro. Ao traçar juntos estes percursos de buscas, estaremos nos educando como “pessoas em relação, mediatizadas pelo mundo”, ao mesmo tempo em que, enraizando nossas reflexões, ações, relações dialógicas nas culturas originárias ancestrais, estaremos contribuindo para “educar” ético-epistemicamente nossos próprios “mundos” a viver, a conviver e a gerar vida em plenitude.

(Reinaldo Matias Fleuri és professor de la Universidad Federal Santa Caterina. Brasil)

Referências
-ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária. Elefante. 2016.

-ALTMANN, Philipp. Buen Vivir como propuesta política integral: Dimensiones del Sumak Kawsay. Revista Latinoamericana de Políticas Y Acción Pública. Vol. 3, N. 1, p. 55-74, maio 2016.

-BATESON, Gregory. Mente e Natureza. A unidade necessária. [Mind and Nature: a necessary unity]. Trad. bras. Claudia Gerpe. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986 [1979].

-BENTO, Karla Lucia. Povo Laklãnõ/Xokleng e/em processos de decolonização: leituras a partir da Escola Indígena de Educação Básica Vanhecu Patté – Aldeia Bugio / Terra Indígena Ibirama/SC. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Regional) - Universidade Regional de Blumenau. Blumenau, 2018. 245 f.

-DUSSEL, Enrique. Filosofias del Sur: descolonización y transmodernidad. Ciudad de México: AKAL, 2017.

-FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

-GAUTHIER, Jacques. Demorei tanto para chegar… ou: nos vales da epistemologia transcultural da vacuidade. Tellus, Campo Grande, v. 11, n. 20, p. 39-67, jan./ jun. 2011. Disponivel em: http://tellus.ucdb.br/index.php/tellus/article/download/214/260 . Acesso em 19 ago. 2019.

-MACAS, Luis. “El Sumak Kawsay”. In: HIDALGO-CAPITÁN, Antonio Luis; GARCÍA, Alejandro Guillén; GUAZHA, Nancy Deleg. (Editores). Sumak Kaesay Yuyay – Antología del Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre Sumak Kawsay. Huelva y Cuenca: FIUCUHU, 2014, p. 177-192.

-MALDONADO, Luis. “El Sumak Kawsat/Buen Vivir/Vivir Bien. La experiencia de la República del Ecuador”. In: HIDALGO-CAPITÁN, Antonio Luis; GARCÍA, Alejandro Guillén; GUAZHA, Nancy Deleg. (Editores). Sumak Kaesay Yuyay – Antologia del Pensamiento Indigenista Ecuatoriano sobre Sumak Kawsay. Huelva y Cuenca: FIUCUHU, 2014, p. 193-210.

-WALDMÜLLER, J. Buen vivir, Sumak kawsay, ‘Good living’: an introduction
and overview, Alternautas, 1(1), 2014, p. 17-28. Disponível em : http://www.alternautas.net/blog/2014/5/14/buen-vivir-sumak-kawsay-goodliving-an-introduction-and-overview . Acesso em 19 ago. 2019.

-WALSH, Catherine. Interculturalidad, Estado, Sociedad – Luchas (De)Coloniales de Nuestra Época. Quito: Universidad Andina Simon Bolívar/Abya Yala, 2009.