Mesa, copo, prato, sal, talher em 2021

Article de Selvino Heck

15 / 03 / 2021 | STEPV

Duas frases marcaram o início dos anos 2000 no Brasil.

A primeira. O presidente Lula disse, quando da sua posse e lançamento do Programa Fome Zero: “Se eu conseguir que todos os brasileiros e todas as brasileiras possam tomar café da manhã, almoçar e jantar, já terei cumprido a missão da minha vida.”

A segunda, de Frei Betto, Assessor Especial da Presidência da República: “Matar a fome de pão, sim, em primeiro lugar; mas também, e ao mesmo tempo, saciar a sede de beleza.”

Faz pouco tempo. Menos de 15 anos, início do século XXI. Eram tempos de esperança.

“As iniciais do então Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar formavam a palavra MESA. Sobre esta MESA, a Mobilização Social do Fome Zero, coordenada por Oded Grajew e por mim (Frei Betto), colocou o COPO (Conselho Operativo do Fone Zero), o PRATO (Programa de Ação Todos pela Fome Zero), o SAL (Agentes de Segurança Alimentar) e o TALHER. TALHER é um instrumento de alimentação. Para o Programa, não só alimentação física, mas também mental e espiritual. O Fome Zero não quer saciar apenas a fome de pão, mas também a de beleza: promover a educação cidadã dos beneficiados. A equipe conhecida por TALHER prepara monitores que capacitam quem participa de Comitês Gestores, COPOS ou atua como SAL. E ajuda a multiplicar muitos TALHERES Brasil afora (Frei Betto, A fome como questão política, In ‘Fome Zero: Textos fundamentais’, Ed. Garamond, 2004, pp. 26-27).

Ivo Poletto, da primeira equipe de educadores e educadoras do TALHER, escreveu: “Educação cidadã é um amplo processo de descoberta do sentido ético e do sentido político do Programa Fome Zero, a ser realizado com pessoas, movimentos e entidades que trabalham com educação popular. Tem como missão reforçar a mobilização cidadã dos excluídos e excluídas. Essa mobilização visa à conquista das transformações estruturais – reforma agrária, geração de emprego com salário adequado, apoio à geração de trabalhos e serviços que gerem renda, reforma urbana, etc. -, necessárias para que sejam geradas oportunidades para que todas as pessoas e famílias garantam sua segurança alimentar e nutricional com autonomia” (‘Educação cidadã multiplicadora: O que é?’, op. cit).
 
Em ‘PÉ DENTRO, PÉ FORA, NA CIRANDA DO PODER POPULAR’ (RECID, Instituto Paulo Freire, Secretaria de Direitos Humanos), publicação de 2011, é contada a história da Rede de Educação Cidadã (RECID) de 2003 a 2010, durante os dois governos Lula Presidente. A primeira parte da publicação – ‘RECID (2003-2010) entre a Realidade e a Utopia’-, abre com uma citação de Paulo Freire: “Todo amanhã implica, necessariamente, o sonho e a utopia.”

A partir da equipe dos 7 educadores populares do TALHER, surgiu a Rede de Educação Cidadã (RECID), com base na pedagogia libertadora e conscientizadora de Paulo Freire. Hoje, 2021, mesmo em tempos de governo golpista, a RECID resiste bravamente, na base da educação popular militante, e continua no trabalho de ‘saciar a sede de beleza’, de dignidade, de cidadania, de direitos, de democracia. 

O Fome Zero não era só o Cartão Alimentação, que depois tornou-se o Bolsa Família. Eram políticas e programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), o reforço ao PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), programas de apoio à agricultura familiar e camponesa, a economia solidária, entre muitos outros. E sempre, junto e ao mesmo tempo, mobilizar a sociedade, construindo a cidadania junto aos beneficiados pelos programas, através da RECID, Rede de Educação Cidadã.
Além disso, eram envolvidas outras áreas de governo, como a Secretarias da Mulher, da Igualdade Racial, Juventude, Economia Solidária, as políticas de agricultura familiar e camponesa, o desenvolvimento social com os Territórios da Cidadania, o Cultura Viva, em diálogo permanente com a sociedade, os movimentos sociais, as pastorais populares, escolas e Universidades. Deste diálogo, surgiram, sendo formalmente assumidos pelo governo federal, a Política Nacional de Participação Social, lançado pela presidenta Dilma Rousseff em 2014, o Marco de Referência da Educação Popular para as Políticas Públicas, lançado pelo Ministro Gilberto Carvalho em 2014, a Política Nacional de Educação Popular em Saúde em 2013, e a Política Nacional de Formação da Economia Solidária, com Paul Singer.

Hoje, 2021, depois do ilegítimo impeachment da presidenta Dilma, três anos de um governo ilegítimo e dois anos de um governo desastroso e autoritário, as manchetes não mentem: a fome voltou! O Brasil corre sério risco de voltar ao Mapa da Fome, de onde saiu, segundo a FAO/ONU, pela primeira vez na história em 2014. O atual governo federal acabou com todas as políticas, programas e instrumentos de ‘matar a fome de pão e saciar a sede de beleza’: a RECID, o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), surgido a partir do Plano de Segurança Alimentar proposto pelo Governo Paralelo constituído por Lula, com a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, Betinho à frente, e cujo primeiro presidente foi Dom Mauro Morelli.

“A volta do Brasil ao Mapa da Fome mostra o fracasso do mercadismo caboclo.  Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome. A FAO analisou dois períodos distintos. Entre 2000 e 2013, a quantidade de brasileiras em situação de subalimentação caiu 82%” (Luís Nassif, 18.09.2020).

“Golpe traz de volta a fome no Brasil. Mais de 3 milhões de brasileiras/os deixaram de ter acesso a uma alimentação básica. A fome tinha recuado em mais de 50% em dez anos” (Brasil247, 17.09.2020).

“Mulheres, pardos e pretos estão mais vulneráveis a passar fome no Brasil. País teve pior nível de segurança alimentar desde 2004, segundo dados do IBGE” (UOL, 17.09.2020). “Fome aumenta 43,7% em cinco anos, diz IBGE. 5,1% da população de 0 a 4 anos de idade e 7,3% da população de 5 a 17 anos convivem com a insegurança alimentar” (Correio do Povo, 17.09.2020). Mais de 1/3 da população brasileira apresentou algum grau de insegurança alimentar no biênio 2017/18, maior índice registrado pelo IBGE desde 2004. 84,9 milhões de brasileiras/os, de uma população de 207,1 milhões, moravam com algum grau de insegurança alimentar em 2017/18. 10,3 milhões com insegurança alimentar agora, aumento de 43,7% desde 2013.

Enfrentamos hoje a volta de um estado de fome epidêmica no Brasil, diz a historiadora Adriana Salay, do Coletivo Banquetaço, que organiza o Quebrada Alimentada, com a frase ‘gente é pra brilhar, não pra morrer de fome’. Ela vê a fome epidêmica, causada pela emergência sanitária, juntar-se à fome endêmica no país. 37% das famílias viviam em insegurança alimentar em 2018. Essa percentagem era de 23% em 2013. Para ela, “o governo não fará nada para impedir a fome sem pressão popular” (UOL, 12.10.2020). 

Num debate promovido pelo CONSEA RS (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional), com diferentes atores sociais sobre a pandemia do coronavírus e a volta da fome, Rui Antônio de Souza falou em nome do Comitê contra a Fome e o Vírus da Lomba do Pinheiro. A Lomba do Pinheiro é um conjunto de vilas populares na Zona Leste e periferia de Porto Alegre e Viamão, com uma longa história de luta e mobilização de lideranças e de seus moradores, desde os anos 1970, através da presença dos frades franciscanos (e onde morei e atuei como frade franciscano nos anos 1970/80), com as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), Associações de Bairro, movimentos culturais. Hoje, 2020, conta com o Conselho Popular da Lomba do Pinheiro, com o Núcleo de Reflexão Política da Lomba do Pinheiro, um Cursinho Popular, o KiLomba, as CEBs, espaços que impulsionaram a formação do Comitê contra a Fome e o contra o Vírus.

Na instalação do Comitê, início de 2020, foram decididos três encaminhamentos principais: elencar quem precisa de alimentos e organizar a entrega para essas pessoas; fazer o mapeamento das campanhas feitas na Lomba e os pontos críticos para ajuda urgente; passar carro de som pela Lomba falando da doença, da importância de ficar em casa e da proposta de renda mínima.

O Comitê conta com a presença e participação das lideranças das muitas vilas, através das Associações de Bairro, das CEBs, da Paróquia Santa Clara, sob responsabilidade dos frades franciscanos, e outras instituições religiosas, das escolas, num grande mutirão de enfrentamento da fome, da miséria e do desemprego. Fazem distribuição de alimentos, de cestas básicas, de máscaras, kits de material de higiene incluindo álcool gel, botijões de gás, roupas, fazendo sopões e quentinhas, e de tudo mais que muitas famílias hoje precisam para sua sobrevivência. Tudo feito e tendo participação direta das lideranças de cada vila ou das ruas das comunidades.

Não se fica, no entanto, apenas na assistência imediata. São mobilizações na ponta e ações na base. Na feliz expressão de Rui Antônio de Souza, faz-se formação na ação. Todas as quintas- feiras reúnem-se lideranças e pessoas atendidas para conversar sobre o que está acontecendo, o que está sendo feito e o que ainda há por fazer. Em primeiro lugar, escutar as pessoas, dar-lhes vez e voz. Depois, conversar sobre temas como Economia Solidária, saúde, educação, políticas públicas, participação popular, democracia, para que as pessoas comecem a entender o que está acontecendo, compreendam as razões porque estão com fome, não têm emprego, e do porquê os governos pouco aparecem ou nem aparecem. E no diálogo e amorosidade freireanos, todas e todos começarem a agir juntos, abraçados, solidária e coletivamente.

Dar assistência e doações resolvem o problema imediato. O fundamental é incluir na caminhada a própria população e suas lideranças. E apoiar a sua auto-organização, para que, compreendendo os acontecimentos e as políticas, possam agir e exigir seus direitos. Assim, as novas lideranças que surgem desse processo sentem-se amparadas e poderão, em momentos seguintes e no futuro, serem protagonistas em suas próprias comunidades e nas comunidades vizinhas. Alimentam-se o amanhã, o sonho, a utopia do Reino já, desde aqui e agora.

É a formação na ação. Não é apenas a solidariedade na ação. É ação e formação juntas. É formação e conscientização à base da solidariedade. São a MESA, o COPO, o PRATO, o SAL e o TALHER hoje, 2020: ‘matar a fome de pão e saciar a sede de beleza’.

Leonardo Boff escreveu em 2004: “Vivemos tempos de grande barbárie, porque é extremamente parca a solidariedade entre os humanos. Um bilhão e quatrocentos milhões de pessoas vivem com menos de um dólar por aí. Dois terços destes são constituídos pela humanidade futura:  crianças e jovens com menos de quinze anos, condenados a consumir duzentas menos vezes energia e matérias-primas do que seus irmãos e irmãs norte-americanos. Mas quem pensa neles?” (‘O ethos que se solidariza’. In ‘Fome Zero: Textos Fundamentais’, op. cit).

Escrevi, em 2004: “Um projeto de desenvolvimento democrático-popular combina a democratização do Estado e da sociedade com um modelo de desenvolvimento econômico e social a partir da maioria da população, do mercado interno, do setor produtivo, da soberania nacional, da participação popular, com o sentido ético-político de distribuir renda, riqueza e poder. O Programa Fome Zero (PFZ) insere-se neste contexto e perspectiva. Faz-se assim uma verdadeira revolução democrática” (‘Sentido ético-político e transformação social’. In ‘Fome Zero:  Textos Fundamentais’, op. cit). 

Bons tempos aqueles de 2003 e os anos seguintes! Mas estamos em 2020. MESAS, COPOS, PRATOS, O SAL, TALHERES e RECIDs (Redes de Educação Cidadã) continuam mais que nunca urgentes e necessários hoje. Eliane Martins, da primeira equipe de educadoras/es do TALHER e hoje da equipe de formação da Escola Florestan Fernandes, escreveu em 2004, para aquele momento histórico, e continua escrevendo para os tempos que vivemos hoje: “O que está posto como tarefa histórica para o povo brasileiro é um profundo processo de mobilização e organização. Mais que nunca se faz necessário conhecer, participar, ouvir e falar. Não é tempo para silêncio, para esperas em arquibancadas distantes da vida. É hora de entrar no jogo, entrar na partida que está acontecendo aqui no chão” (‘Primeiros Passos da Fundação do Brasil’. In: ‘Fome Zero, Textos Fundamentais’, op.cit.).

A luta popular, o trabalho de base, o ‘saciar a sede de beleza’, a pedagogia libertadora, junto com o cuidado com a Casa Comum do Papa Francisco, no ano do centenário de Paulo Freire,  continuam vivos, presentes. Todas e todos estão/estamos convocados para esta tarefa histórica.

Selvino Heck

Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990)
Assessor Especial da Presidência da República (2005-2016)
Conselheiro do CONSEA RS
Membro da Coordenação Ampliada Nacional do Movimento Fé e Política
Em outubro de dois mil e vinte
Em fevereiro de dois mil e vinte um